Um dos mais importantes cineastas palestinos vivos, Hany Abu-Assad (nascido em Nazaré, 1961) retrata em O Ídolo (2015, Título original: Ya tayr el tayer) a jornada do cantor Mohammed Assaf de seus primórdios em meio aos escombros até o status de ícone pop do mundo árabe. Malandro e determinado o bastante para escapar de Gaza, furando o cruel cerco imposto pela ocupação militar israelense, para ir ao Cairo disputar o Arab Idol, o Assaf aqui ficcionalizado expressa algo comovente sobre os anseios da população que enfrentou, nos últimos 9 meses, condições absolutamente infernais.
Em meio à horrenda carnificina em curso, em que o regime de extrema-direita que encabeça esta entidade psicopata que hoje chamamos de Israel vem buscando obliterar todas as condições para o florescimento da vida nos territórios palestinos ilegalmente ocupados, assistir a este filme inspirado em eventos reais ajuda a insuflar ânimo naqueles que lutam por um mundo onde a entidade sionista pare de impor a morte em massa, pela bomba, pela sede, pela fome, pelo cerco, a um povo que quer se auto-determinar – e que também anseia por cantar.
Seguindo nas pegadas de enredos de rags to riches, que descrevem a trajetória de um protagonista que se alça da miséria rumo ao estrelato, o pulsante biopic de Hany revela um jailbreak que demanda do protagonista muita audácia, sobretudo para cruzar a fronteira de Gaza com o Egito. Uma localização geográfica que adquiriu contornos de pungente tragicidade em 2024 quando, durante o genocídio em curso, milhões de cidadãos consternados pediram “todos os olhos em Rafah”.
Cantar em terra de tantos escombros, de tanta dignidade humana aviltada, pode soar estranho; mas só para aqueles que se confinam na noção do senso comum que concebe o canto apenas como entretenimento, espetáculo e mercadoria. O canto, em sentido ampliado, não emana só do júbilo, é também um modo de dar expressão ao lamento, ou até mesmo de fazer ambos surgirem mesclados. Na entremescla de júbilo e lamento, a Palestina canta através do gogó fora do comum de Assaf.
Hany faz aqui um crowd pleaser que se assemelha ao Slumdog Millionarie de D. Boyle ou ao Coda – No Ritmo do Coração de Sian Heder, ambos filmes de ampla consagração junto ao público e premiados pelo prêmio supremo da indústria cinematográfica estadunidense; com O Ídolo, Hany Abu-Assad pode soar suspeito de estar se rendendo a uma estética submissa aos paradigmas valorizados no Oscar – prêmio, aliás, ao qual Hany já foi indicado duas vezes, na categoria filme em língua estrangeira, por Paradise Now e por Omar – proeza tão mais digna de nota pois estes foram os dois únicos filmes palestinos já nomeados ao prêmio.
Para além das semelhanças inegáveis com os supracitados filmes de Boyle e Heder, devemos reconhecer que Hany honra não apenas uma vertente do cinema comercial anglo-saxão focado no rags to riches, mas presta reverência ao cineasta iraniano Amir Naderi, sobretudo a seu clássico The Runner (1984), que integra a coleção Criterion. O Ídolo compartilha com a obra de Naderi o holofote cheio de empatia que lança sobre uma criança “determined to rise above his circumstances” (determinada a alçar-se acima de suas circunstâncias) [1].
A banda juvenil que a primeira parte do filme descreve, correndo atrás de instrumentos musicais e apresentando-se em condições bastante adversas, prova que há muita ginga e malandragem emergindo do visceral anseio de expressão dos pequenos Gazanos. Há neste setor do filme um certo tom leve de crônica que pode evocar a comédia sueca We Are The Best de Lukas Moodyson. Mas em Gaza sob cerco do sionismo fascista não é possível que a leveza e o humor sejam o tom dominante.
A bandinha da moçada logo toma uma rasteira que não é do destino mas da opressão instituída por Israel e vive a tragicidade da guitarrista que morre adoentada do rim. Mesmo ainda na pré-adolescência, Mohamed conclui que ela nunca teria morrido desta doença se fosse uma criança sueca. Na resenha do The New York Times, isto é corretamente enfatizado: “when one child falls ill, another child’s response is telling: If you were a Swedish kid, you would never have gotten sick.” [2]
Esta jovem musicista e sua morte precoce, traumatizante para todos que a ela sobrevivem, é um modo do enredo apontar para a imposição, por parte do Estado de Israel, de condições que geram o adoecimento e o impedimento do acesso à saúde, medida dentre as mais cruéis para aqueles que padecem na grande prisão a céu aberto a que Gaza vem sendo reduzida pelos impositores da Catástrofe Interminável iniciada com a Nakba de 1948.
Proibidos de ter voz ressonante no mundo pela tirania do algoz silenciador, os palestinos precisam fazer até mesmo de seus cantares gestos de desobediência civil – Israel quer que estejam silentes e que aceitem morrer de fome e sede em silêncio. Israel os quer trancados atrás de arame farpado e altos muros em catatônico mutismo. Neste filme, a música, cantada em árabe, afirmação cultural em face dos tanques e drones, é uma audivel recusa deste silenciamento imposto e pretendido pela entidade sionista. É também harmonia, melodia e ritmo que se insurgem contra a aporrinhante zanana feita pelos drones de vigilância e de bombardeio que Israel faz sobrevoar sobre as cabeças sempre ameaçadas de serem explodidas dos Gazanos.
Quando o cantor vence o concurso televisionado Arab Idol, as ruas explodem numa alegria contagiante, análoga àquela do povão quando a selação nacional vence uma Copa do Mundo de futebol. O Ídolo é veículo para um “sentimento nacional” que é brutalmente impedido de se expressar pelo regime israelese e que não triunfa senão muito excepcionalmente.
Uma objeção à estória real que o filme recria é que este destino excepcional não representa solução coletiva nenhuma. É a todo este povo que deveria ser concedido o direito à voz, ao canto, à dança, à expressão – e que não deveria estar há décadas enjaulado em um gueto, sem voz nem vez, tendo a ele o cantar – tanto o de júbilo quanto o de lamento – recusado.
Considero Hany um cineasta de grande competência no manejo da linguagem cinematográfica, que conduz com mão segura o enredo de seus filmes muito bem ritmados e fotografados, montados com uma dinâmica que os torna cativantes e onde sempre desponta um certo humor diante de circunstâncias extremas. É altamente recomendável sua filmografia a quem quer que se interesse pelos rumos do cinema global e em especial para aqueles (que aliás deveriam ser mais numerosos) que querem ver uma proliferação de mais produções com uma pegada de cinema do oprimido.
No entanto, o problema com este tipo de enredo ao estilo d’ O Ídolo é sua possivel interpretação meritocrática: o protagonista vence e atinge a fama, apesar de todos os percalços, por ter mérito ou “dom”. Sua excepcionalidade, encarnada na voz, é aquilo que o conduz das trevas do anonimato aos píncaros de celebridade. Isto deixa o filme com um sabor “ocidentalizado”, com as seduções do pop e dos holofotes do showbizz servindo como sedução para a união das multidões diante de milhares de televisores. Mas o pesadelo do pop – que o filme passa longe de questionar – é que este é um jogo com poucos vencedores e muitos perdedores. Sua lucratividade molha as mãos e contas de bem poucos. O vencedor constitui uma pequeníssima minoria; a imensa maioria amargará a derrota recorrente e a humilhação incessante.
O filme pode fomentar bons debates sobre o tema da idolatria e do quanto as pessoas sentem uma necessidade de identificação com o ídolo, neste caso um cantor que acaba servindo como veículo para o rarefeito sentimento de orgulho nacional. No caso, temos uma idolatria secular, típica de um certo Ocidente que o mundo árabe às vezes emula – o Arab Idol sendo uma versão análoga dos American Idols.
De todo modo, o filme é gostoso de assistir e é capaz de comover, conseguindo pintar um pano-de-fundo histórico e político para a ascensão rumo ao estrelado de seu jovem herói. Fez-me lembrar do poema, muito citado atualmente e que virou vários memes, em que o poeta Makhoul afirma a impossibilidade de qualquer arte despolitizada enquanto não cessarem os bombardeios. É a chuva de bombas sobre Gaza no atual genocídio que oferece um backdrop sombrio para esta estória de agridoce triunfo.
“Para escrever um poema
que não seja político
devo escutar os pássaros
Mas para escutar os pássaros
é preciso que cesse o bombardeio.”
Marwan Makhoul [3]
Em sua resenha para a TimeOut, Tom Huddleston pontuou ainda com pertinência: “‘The Idol’ does offer a fascinating window into life in the weeping sore that is Gaza, and the mere existence of a film about the Palestinian people that doesn’t depict them as terrorists or victims is to be celebrated.” [4] O filme de Hany de fato apela a uma audiência global e estende um convite quase irrecusável para a identificação empática com um palestino que se recusa a estar confinado nos esteréotipos do terrorista ou da vítima, e que manifesta audácia e força de vontade na conquista de seus sonhos e realização de suas ambições, tema que ressoa fortemente nas platéias ocidentais.
Outra boa chave de leitura para o filme consiste em mobilizar o conceito de alegoria, como fez, para a AlJazeera, H. Dabashi: “In the capable hands of Abu-Assad, Mohammed Assaf’s story turns from the simple life of a talented young man from humble origins catapulted to global fame into an allegory of the Palestinian nation rising with grace and in defiance from the ruins of its colonial occupation, theft, and destruction by Israel. (…) In Palestinian cinema, the Zionist project has found a mirror it cannot break, it cannot hide, it cannot send its Hasbara in Israel and the US to smear, discredit and dismantle. In Palestinian cinema, the figure of the defiant Palestinian – as both true and beautiful – has become allegorical for the world at large.”
O projeto imperial sionista, por mais que tente, não consegue impor ao povo palestino a obliteração ou o silêncio dos cadáveres. Por sobre os escombros, teima em erguer-se um canto que os feios muros do apartheid não conseguem abafar. É um canto de dor e revolta, de indignação e de justiça ferida, e que insiste em rivalizar com o barulho horrendo dos bombardeios como prova pulsante de um povo faminto por liberdade e por beleza, alimentos insistentemente recusados por Israel e seus cúmplices no crime ocidentais. Até quando este canto será abafado pelo zanana dos drones e kabooms do genocídio?
Eduardo Carli de Moraes
Goiânia, Julho de 2024
PARA ASSISTIR AO FILME, BAIXE O TORRENT
E A LEGENDA EM PORTUGUÊS (1.7 GB)
Via Fórum Making Off
NOTAS
2. RAPOLD, Nicolas. Review: ‘The Idol,’ the Underdog Story of an ‘Arab Idol’. In: THE NEW YORK TIMES. URL: https://www.nytimes.com/2016/05/27/movies/the-idol-review.html
3. MAKHOUL, Marwan.
4. HUDDLESTON, Tom. The true story of a Palestinian refugee who won Arab Idol. URL: https://www.timeout.com/movies/the-idol
5. DABASHI, Hamid. The Palestinian: From the Idol to the allegory. In: AL JAZEERA. URL: https://www.aljazeera.com/opinions/2015/12/19/the-palestinian-from-the-idol-to-the-allegory
OUTROS LINKS: Rotten Tomatoes – Meta Critic – Slant – Philadelphia Inquirer – Kicking the Seat – NPR – Variety – Salon.
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Publicado em: 22/07/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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